edição 39 | 2023 | abril a junho
Flávio Ferrari, engenheiro de produção, especializado em Marketing e pós-graduado em Filosofia e Autoconhecimento.
Por Flávio Ferrari*
Água já foi considerada um recurso abundante no Brasil, mas isso são “águas passadas”, como dizia a minha avó. Quando os cientistas avaliam a possibilidade de existência de vida em algum planeta, exigem uma série de requisitos e condições. O primeiro item da lista é a presença de água em seu estado líquido. Na Terra, a presença de água é significativa.
Mais de 70% da superfície do planeta é coberta por ela. Entretanto, menos de 3% da água existente é “doce” (não salgada), e boa parte dessa água necessária para a manutenção da vida não é facilmente acessível, pois está congelada ou armazenada em aquíferos profundos.
Outro dado interessante é o de que a quantidade de água no planeta tende a ser constante. O ciclo hidrológico (evaporação, condensação, precipitação, escoamento superficial, infiltração no solo, percolação, etc.) não descaracteriza a substância. Temos boas notícias, então.
Utilizamos, atualmente, menos de 3% da água disponível no planeta e o precioso líquido não corre perigo de extinção. Mas temos razões para nos preocupar. Ainda não dispomos de tecnologia economicamente viável para utilizar os 97% restantes (água salgada) como água potável e, como utilizamos mal a água acessível, vamos enfrentar sérios problemas num futuro próximo.
Em grandes números, 70% da água doce disponível é utilizada pelo agronegócio, 20% pelo setor industrial e 10% pelo consumo humano. Ou seja, se faltar água, também faltará comida. E muitas regiões do planeta já enfrentam o que se convencionou chamar de estresse hídrico, ou seja, a demanda por água é maior do que a oferta.
Considerando a relevância econômica, política e social desse recurso (a água), poderíamos esperar que os estudos para dessalinização das águas dos oceanos se acelerem, e que encontremos soluções economicamente viáveis para sua utilização.
Também não se pode descartar a possibilidade de produção de água sintética, o que já é possível, porém economicamente inviável. Mais simples e fácil do que tudo isso é fazer uma melhor gestão dos recursos hídricos disponíveis, utilizando os princípios da economia circular.
Recuperar sistemas de distribuição antigos e com vazamentos e adotar procedimentos de reciclagem das águas utilizadas são ações de implementação mais rápida, com tecnologia conhecida e que requerem menor investimento. Reduzir o consumo de água do agronegócio em 10% duplicaria, matematicamente, a disponibilidade de água para consumo humano. Reutilizar a água de consumo industrial também poderia contribuir para a causa, além de reduzir o impacto ambiental.
O reúso da água de consumo domiciliar, por meio do tratamento do esgoto, embora seja menos significativo em volume, é outra alternativa importante, e que pode, ainda, contribuir para a produção de biometano, como vem sendo feito em alguns projetos. Há de se considerar que, para tanto, é necessário que exista a coleta de esgoto, uma deficiência de quase a metade dos lares brasileiros.
Três elementos são fundamentais para que um possível cenário futuro aconteça: Força, Contexto e Resultado. Por “Força” entendemos a motivação das pessoas, os recursos disponíveis e a intenção dos agentes de mudança.
No “Contexto”, avaliamos os propósitos dos stakeholders, o zeitgeist vigente (termo alemão que pode ser traduzido por “sinal dos tempos”) e os fatores humanos. Em relação ao “Resultado” consideramos o que precisa ser transformado para que o cenário aconteça (e os custos dessa transformação), os requisitos de liderança do processo e a relação entre o custo e o benefício das transformações (o ROI).
Se existe motivação suficiente, os recursos estão disponíveis e a conta fecha no fim, o cenário é possível. O que nos impediria, então, de caminhar na direção de soluções mais imediatas para o desafio do estresse hídrico, que nos parece iminente?
Acredito que seja óbvio, para cada um de nós, que ninguém quer ficar sem água. As instituições que seriam afetadas, além das pessoas, tampouco desejam esse triste destino. Mas preocupações e desejos obedecem a uma certa hierarquia, e no Brasil, no momento atual, temos outras prioridades.
O estudo realizado pela SocialData, no início deste ano, listou os dez principais tópicos de atenção para 2023 e 2024.
Imediatismo e incerteza lideram o ranking das preocupações. Por imediatismo podemos entender pessoas desejando segurança e tranquilidade; empresas preocupadas com resultados e governos em busca de estabilidade – foco na sobrevivência imediata.
Incertezas em função do cenário econômico instável e dos conflitos geopolíticos, que acentuam a sensação geral de insegurança e desmotivam o planejamento para prazos mais longos. Além disso, as pessoas estão preocupadas com seus empregos (ou qualquer outra forma de trabalho), enfrentam um clima de polarizada desconfiança e precisam garantir suas necessidades básicas.
Sobrevivência é a palavra de ordem e, como não estamos diante da ameaça imediata de faltar água amanhã, este assunto fica para depois. Não se trata de um impedimento, mas de falta de motivação. Mesmo para quem enfrenta as dificuldades relacionadas à falta de saneamento básico, num momento de crise, que ameaça a sobrevivência, o assunto passa a ser secundário, inclusive porque parece não haver ação direta (pessoal) possível para resolver o problema de forma imediata.
O futuro é hoje, o fim do mês, as contas para pagar, o atendimento médico necessário (que, muitas vezes, teria sido evitado com a presença de saneamento).
E, como esses assuntos dependem fortemente da esfera política, a situação se torna ainda mais complicada. Políticos são sensíveis às insatisfações e aos desejos mais imediatos da população, e priorizam suas ações de acordo com eles. O que não estiver sendo discutido pela população tenderá a receber menos atenção imediata.
Vivemos em “bolhas”, pautadas por algoritmos dos mecanismos de busca e redes sociais, e pelos temas sugeridos pela mídia e por influenciadores digitais. Quando um tema relevante não emerge, organicamente, nessas bolhas, ele precisa ser inserido para provocar sua discussão.
A comunicação de massa nem sempre é suficiente para isso. O volume de informações que recebemos diariamente, revestidas de um caráter de urgência, é colossal. Somos, obrigatoriamente, seletivos, e o critério que direciona nossa atenção é a relevância.
O que é mais relevante, neste momento, é a sobrevivência num cenário incerto que requer soluções para problemas imediatos. O Futuro da Água é absolutamente relevante para nossa sobrevivência. Mas para se enquadrar como algo que necessite de ação imediata (dado o tempo requerido para implementar soluções), é necessário informar e educar, penetrando as “bolhas” e plantando a semente desta causa.
Isso é algo que cada um dos 12 mil colaboradores da Aegea, conscientes da real relevância desta questão, pode ajudar a fazer.
Flávio Ferrari é consultor e palestrante do tema Inovação. Nos últimos 20 anos, comandou os três maiores Institutos de Pesquisa de Mídia (Kantar/Ibope, Ipsos e GfK) no Brasil; atuou como executive coach para o Center for Creative Leadership, foi sócio e mentor de startups digitais e criou o hub colaborativo SocialData. Desenvolveu e coordenou programas de MBA em Inteligência Competitiva para a ESPM e Unyleya, e módulos de Educação Executiva para ESPM e FGV. É autor dos livros Atitude digital – os caminhos da transformação (2018), Pesquisa de mercado: apresentação dos principais conceitos e aplicações em processos de decisão (2020) e ACUMEN – The Future Castles’ Stones (2020), e foi o criador do canal Descolapso (youtube.com/descolapso).