edição 38 | 2023 | janeiro a março
Lucilaine Medeiros, diretora da Aegea responsável pelos temas Regulatório e Contencios
Por Lucilaine Medeiros*
Os serviços de saneamento básico começam a ter suas primeiras diretrizes regulatórias com o Código de Águas, de 1934, que trouxe disposições sobre a preferência do abastecimento público sobre os demais tipos de usos e a forma de cobrança, bem como passou a definir formas e prazos de delegação de serviços públicos, como o de energia elétrica. Tratou-se de um primeiro esforço de regulação por meio de uma política de recursos hídricos, momento em que a gestão municipal predominava como prestadora direta dos serviços de saneamento.
Apesar de dotado de contornos regulatórios inovadores para a época, o Código de Águas não representava um modelo institucional robusto, sendo o seu foco a ordenação da água na qualidade de bem comum, bem como a interação de agentes públicos e privados no acesso e uso da água, incluindo a solução de conflitos envolvendo recursos hídricos.
O modelo estabelecido pelo Código de Águas durou até os anos de 1950, com a transição para uma gestão centralizada no âmbito estadual. Com efeito, no fim da década de 50 começaram a surgir as primeiras companhias estaduais e de economia mista para gerir o saneamento – que até hoje permanecem como principais prestadoras dos serviços.
Algumas décadas depois, durante a ditadura militar, ocorreu uma centralização política e maior peso da União nas políticas de saneamento básico, sendo criado, em 1971, o Plano Nacional de Saneamento (Planasa). O Plano representou evolução significativa no setor, principalmente no que tange à expansão de redes de água, uma vez que recursos públicos, na sua maior parte da União, passaram a financiar a implantação e melhoria do saneamento.
O fim do Planasa ocorreu em 1986, no contexto da crise econômica e da hiperinflação daquela década. Porém, apesar de o Planasa ter representado importante marco político para o setor, os indicadores de saneamento básico, notadamente os de esgotamento sanitário, continuavam com significativos déficits após o fim do Plano.
O Brasil passa, então, por um hiato regulatório no setor de saneamento, com baixa evolução dos investimentos pelas companhias estatais.
Na década de 90, no bojo das medidas liberalizantes e buscando recuperar a capacidade de investimento do setor de infraestrutura de serviços públicos, advém a edição da lei de concessões de serviços públicos (Lei nº 8.987/1995), que regulamenta o regime de concessão ou permissão dos serviços públicos, por meio de licitação, à pessoa física ou jurídica que demonstre capacidade para seu desempenho.
Ainda na linha de fomentar políticas públicas que estimulassem a entrada do capital privado no setor de infraestrutura do país, o governo edita, em 2004, a Lei nº 11.079, conhecida como “Lei das PPPs”, instituindo normas para a contratação de parceria público-privada no âmbito de toda a administração pública.
Em que pesem os novos dispositivos legais que estimularam a atração do capital privado para investimentos nos setores públicos de infraestrutura, no setor de saneamento básico, diferentemente dos setores regulados de energia, rodovias e telefonia, não se verificou uma penetração em maior escala da iniciativa privada.
Em razão disso, em 2007, edita-se o Marco Legal do Saneamento Básico – MLSB (Lei nº 11.445/07), instrumento por meio do qual o governo define as diretrizes nacionais para o saneamento básico, com a introdução de um conjunto amplo de novos instrumentos de gestão, regulação e planejamento.
Neste aspecto, foi prevista no MLSB a elaboração de um plano federal para o setor, o Plano Nacional de Saneamento Básico (Plansab), cujo texto final foi aprovado em 2013 e cujo objetivo foi estabelecer um planejamento para o saneamento básico no país, instituindo metas e objetivos para serem alcançados até 2030.
Mesmo com avanços relevantes decorrentes da Lei nº 11.445/07, as melhorias foram tímidas e os indicadores, quantitativos e qualitativos, ainda permaneciam muito aquém do ideal, tanto pela baixa quantidade de concessões e de parcerias público-privadas firmadas no setor de saneamento, bem como pela pouca ou nenhuma capacidade de investimento das companhias estatais que ainda dominam o mercado, para ampliação/universalização dos serviços de abastecimento de água e de esgotamento sanitário.
Para fazer frente aos demais segmentos de infraestrutura do país e compensar o atraso do setor de saneamento, que gera impacto direto na saúde da população e no meio ambiente em que vivemos e estamos situados, o governo, após ampla discussão no Congresso Nacional, editou, em julho de 2020, o chamado “Novo Marco Legal do Saneamento Básico (NMLSB)” – Lei nº 14.026/2020, cujas premissas principais foram o estabelecimento de condições que proporcionassem a universalização dos serviços de saneamento básico até 2040, bem como a segurança jurídica capaz de atrair investimentos privados para o setor.
Tornou-se obrigatório, portanto, que toda a delegação dos serviços só pode se originar de processo competitivo por meio de licitação, e que todo prestador de serviços delegados deve ter aferida sua capacidade econômico-financeira de universalizar os serviços no prazo legal. O NMLSB trouxe também a figura do regulador nacional, dando à ANA – Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico a competência para editar normas de referência a fim de orientar a atuação das diversas agências reguladoras infranacionais que compõem o setor. Definiu, ainda, que os serviços de saneamento devem estar inseridos em estruturas regionalizadas com o objetivo de geração de ganhos de escala e garantia da viabilidade técnica e econômico-financeira dos serviços para universalização de todos os municípios brasileiros.
A partir do NMLSB, evidenciou-se, portanto, a importância de se garantir a segurança jurídico-regulatória no âmbito do arcabouço legal que rege os serviços de saneamento básico, inclusive para se melhorar a percepção do mercado financeiro e de investidores estrangeiros quanto a possível risco de os contratos de concessão estarem sujeitos a regulações pulverizadas, sem a existência de uma diretriz regulatória nacional que orientasse conceitos básicos para a regulação e que capacitasse os reguladores infranacionais.
Sabemos que uma boa regulação aumenta a atratividade do setor para o investimento privado, que, por sua vez, permite a universalização dos serviços de forma efetiva e no menor espaço de tempo possível. Vale dizer, há uma relação diretamente proporcional entre segurança jurídico-regulatória, investimentos e universalização.
Por isso, ao voltar as atenções para a universalização dentro do prazo previsto no NMLSB, os aspectos regulatórios que impactam a capacidade de investimentos e os que permitem que todos os municípios alcancem a universalização devem ser vistos com especial atenção. Neste aspecto, têm-se os mecanismos legais que garantem os investimentos por meio da complementaridade de esforços entre os setores público e privado, seja por meio de concessões plenas, de subdelegações ou de parcerias público-privadas, bem como podem ser estruturados, por meio da regulação, diversos outros arranjos contratuais que atendam ao interesse público de garantir a universalização dos serviços de saneamento básico, por meio da geração de ganhos de escala, da economicidade, da modicidade tarifária e da adequada e eficiente prestação de serviços de saneamento básico a todos os brasileiros, podendo estar incluídos nesse conceito, além da universalização dos serviços de abastecimento de água e de esgotamento sanitário, o acesso dos cidadãos aos serviços de drenagem pluvial e de resíduos sólidos.
Logo, a boa prática regulatória é o ponto-chave para trazer harmonia, estabilidade e segurança jurídica para a universalização do saneamento básico.
Advogada com mais de 18 anos de experiência em saneamento básico, Lucilaine Medeiros conhece todos os processos de produção e de gestão de uma empresa do setor. Atuou como gerente Jurídica e como diretora-presidente da Águas Guariroba (MS), desempenha a função de diretora Jurídica da Aegea desde 2019 e atualmente responde pelos temas Regulatório e Contencioso. É pós-graduada em Direito Civil e Processo Civil, com especialização em Gestão Empresarial e MBA em Gestão de Negócios. Faz parte do Comitê Jurídico da Abcon, a Associação Brasileira das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto, e do Comitê de Regulação da Aegea, cuja função é assessorar o Conselho de Administração da companhia no monitoramento e nas tratativas de temas regulatórios relativos aos contratos de concessão operados pela Aegea, ao ambiente regulatório onde se operam as concessões e, de maneira geral, ao cenário regulatório do setor de saneamento e sua interface com os demais setores.