Nós vivemos uma emergência climática. Não podemos minimizar o valor e a relevância dessas palavras. O sistema climático terrestre é formado por muitos componentes, são partes. Estamos num momento em que muitas dessas partes estão mostrando sinais muito claros de que estão próximos de colapsarem, de mudar a maneira como funcionam e funcionaram nas últimas décadas. E obviamente que, como sociedade, nós temos uma dependência muito grande dos chamados serviços ecossistêmicos, que mantêm o equilíbrio do clima. Nós estamos sofrendo com as situações de extremos climáticos que têm se tornado mais frequentes e intensas e não temos outra saída que não atuar efetivamente para mitigar e adaptar a essas questões.
A Amazônia e os oceanos têm um papel enorme no sistema climático, são duas das partes que eu mencionei. O Oceano Atlântico tem um papel fundamental no clima da América do Sul, notadamente do Brasil. O transporte de calor que ele desempenha gratuitamente, naturalmente, exerce um controle gigantesco sobre as chuvas de verão no Sudeste, sobre o regime pluviométrico no Nordeste do Brasil e por aí vai. A Amazônia, por sua vez, além do papel enorme no que se refere à biodiversidade, tem uma importância gigantesca na manutenção do regime de chuvas do Sudeste do Brasil, notadamente do Estado de São Paulo. O Sudeste da América do Sul, de um modo geral, também tem o seu regime pluviométrico, em grande parte, controlado por ela. Mas nós não podemos, no sistema climático, tratar exclusivamente de um ou outro componente – eles interagem e é dessa interação que resultam os padrões climáticos.
Um exemplo claro que se deu nos últimos meses foi a crise de seca na Amazônia, o nível mais baixo histórico do Rio Negro e outras drenagens amazônicas, que são os rios Madeira, Tapajós e Xingu, todos igualmente gigantescos. A estiagem severa é fruto de uma interação oceano-amazônia ruim, que foi a seguinte: nós tínhamos, até poucos meses atrás, um El Nino instalado no Oceano Pacífico, e os eventos dele causam diminuição de chuvas na Amazônia. É o modo de variação climática mais relevante que existe no planeta. No Sul do Brasil, aumento de chuva. Outra resposta conhecida do El Nino.
Como se não bastasse, o Atlântico Norte tropical (Caribe, região da Flórida), estava muito aquecido em função das emissões de gases de efeito estufa. Isso fez com que as chuvas da região equatorial do planeta inteiro se deslocassem para o norte, porque elas se deslocam na direção da região onde o oceano está mais aquecido. Parênteses: grandes furacões afetaram o sudeste dos Estados Unidos: Helene e Milton, por que a temperatura na superfície do Atlântico tropical era muito alta. Puxou essas chuvas para o Norte, deixou de chover na Amazônia. Foi a sobreposição de duas situações ruins para a chuva na Amazônia.
As emissões de gases de efeito estufa pelo homem começam a ser sentidas globalmente em 1850. Do ponto de vista da industrialização no Brasil, nós ainda não tínhamos muita coisa, mas outras nações do hemisfério norte, principalmente Europa e América do Norte, já estavam emitindo. Depois, a partir de 1950, começou o que chamamos de grande aceleração. É um segundo marco muito importante e esse sim nós podemos tomar para o planeta inteiro, de aumento nas emissões de gases de efeito estufa, o dióxido de carbono, metano e óxido nitroso, em diversas atividades do homem, marcando o início de uma mudança clara e unidirecional no clima. Em uma região ou em outra demorou um pouquinho mais ou menos para as mudanças serem sentidas.
Essa questão é muito interessante, porque as emissões de gases de efeito estufa do Brasil e do planeta, na média, são muito distintas. O Brasil é um caso à parte, sem dúvida, e isso abre muitas oportunidades para o país. De uma forma global, 73% das emissões de gases de efeito estufa são oriundas de geração e consumo de energia. Mais ou menos 12% vêm do setor agropecuário e 5% da mudança de uso do solo que, de uma forma mais simples, pode ser entendido como desmatamento de bioma primário.
Agora, quando a gente olha para o Brasil, ao redor de 50% das emissões brasileiras vêm de mudança de uso do solo, que é o desmatamento. O segundo principal setor no país é o agropecuário, com 27%. A produção e consumo de energia vem em terceiro lugar, com 20% das emissões brasileiras. Essa diferença, da média global para as emissões brasileiras, abre oportunidades fundamentais que o Brasil pode explorar de maneira mais intensa nos tratados globais e na liderança que o Brasil pode ter no enfrentamento das mudanças climáticas.
Diminuir as emissões na principal fonte de emissão no Brasil, que é o desmatamento, tem um impacto econômico relativamente baixo e ainda tem inúmeros benefícios, enquanto que na média global é muito mais difícil você atacar a principal fonte de emissão, que é produção e consumo de energia. Essa diferença é muito importante e o Brasil está numa situação favorável. Nem por isso não tem um papel fundamental no enfrentamento das mudanças climáticas e dever de casa a ser cumprido.
Os pontos de não retorno são situações que compartimentos específicos do sistema climático possuem de, a partir de uma certa situação, forçada, passar a se comportar de modo completamente distinto ao modo como ele vinha funcionando. Não é uma resposta linear. Tem um limite, um ponto crítico, a partir do qual eu não consigo voltar, pois envolve o conceito de irreversibilidade, que está intrinsecamente associado a uma escala temporal. Um exemplo: se o desmatamento continuar avançando na Amazônia e chegar em um ponto de não retorno, pode ser que aquele sistema não consiga voltar a ser uma floresta novamente. Outro conceito importante é o de histerese – o sistema tem uma história que depende do sentido que ele avança. Se nós, sociedade global, estabilizássemos a partir de hoje as emissões de gases de efeito estufa, o nível do mar ia continuar subindo. A temperatura do planeta ia continuar aumentando, pois o sistema tem um tempo de resposta longo. O nível do mar não está em equilíbrio com as emissões, com os 420 partes por milhão de CO2 que nós, como sociedade, já lançamos na atmosfera. Outro conceito importante é o efeito cascata que, ao se atingir um ponto de não retorno, ele pode levar outros do sistema climático a serem atingidos.
No Brasil, nós temos que nos preocupar demais com essa questão dos pontos de não retorno, pois temos dois componentes do sistema climático, um é a Floresta Amazônica e o outro é a influência do Oceano Atlântico na costa brasileira, e ele também tem um ponto de não retorno. Se a grande circulação de águas no oceano Atlântico, que transporta 16 milhões de metros cúbicos de água por segundo, colapsar, e existe essa possibilidade em função do aquecimento global, do aumento da precipitação direta que diminui a salinidade, vai ter um efeito para nós brasileiros. O cinturão tropical de precipitação vem para o Sul e traz chuvas torrenciais, por exemplo, para o Norte e Nordeste do Brasil, e seca ainda mais intensa que temos observado na Amazônia. Junto ao desmatamento no Sul e Sudeste, pode levar a Amazônia ao seu ponto de não retorno, com uma substituição em grande escala de floresta sempre verde por vegetação rasteira. Menos árvores, menos evapotranspiração. Com isso, a floresta suga menos umidade do Oceano Atlântico, chega menos umidade no Oeste da Amazônia, lá no Acre, uma quantidade menor é transportada para o Centro-Oeste, para o Sudeste e para o Sul do Brasil. E, portanto, nós temos uma diminuição marcante no regime pluviométrico de todos esses estados.
Caso sejam ultrapassados, passarão a funcionar de maneira fundamentalmente distinta do que conhecemos. O problema de ultrapassar um ponto de não retorno para a sociedade é que a nossa capacidade de adaptação, entre outros fatores, depende do tempo. Se nós temos mais tempo para nos preparar, se nós temos mais tempo para construir infraestrutura, nós vamos nos adaptar melhor a um novo modo de funcionamento.
Nós temos que olhar para as atividades positivas que podemos implementar e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU nos mostram quais são. Também têm efeito cascata, com bons resultados para toda a sociedade. Se nós avançarmos efetivamente nas premissas do Objetivo de Desenvolvimento Sustentável nº 6, água potável e saneamento, avançamos também no 13, que é ações contra a mudança do clima. As mudanças climáticas não serão mitigadas, não serão adaptadas, não serão resolvidas por uma ou outra nação. Elas demandam a ação de todas, principalmente as maiores, principalmente aquelas que emitiram historicamente mais e emitem hoje muito. Governo, iniciativa privada, sociedade civil organizada e indivíduos – todos têm que atuar.
O Brasil é o sexto emissor global, mas tem uma janela muito positiva de diminuição de emissões, que é combater o desmatamento e levá-lo a zero. Isso não vai comprometer o desenvolvimento econômico, porque nós temos terras já desmatadas, tecnologia agrícola e pecuária mais do que suficientes para continuar aumentando nossa produção sem novos desmatamentos. Já existem áreas degradadas, não só na Amazônia Legal, mas em outras regiões, e nós já temos uma liderança fantástica em tecnologia agropecuária tropical internacionalmente comprovada para manter e aumentar a produtividade de parcelas que já são utilizadas, de áreas degradadas, fazendo regeneração de florestas. Primeiro ponto no Brasil, ao redor de 50% das emissões é o desmatamento. Segundo, 27% setor agropecuário, terceiro 20% produção e consumo de energia. Existe área suficiente para que a economia brasileira continue avançando sem que uma ou outra seja desfavorecida. Agora, nós temos que obviamente pensar em soluções holísticas que não podem abrir mão de regeneração de floresta numa parte bastante razoável daquela que foi desmatada na Amazônia.
Eu quero deixar a seguinte mensagem: primeiro, as mudanças climáticas, tal qual nós vemos as projeções e já sentimos, são extremamente sérias, efetivamente são. Infelizmente, elas podem ser ainda piores do que as projeções nos mostram e um bom exemplo são os pontos de não retorno do sistema climático. No entanto, eu não perco a esperança de que governo, sociedade civil, cada cidadão e iniciativa privada, juntos, vão conseguir superar esse maior desafio, na minha opinião, que a humanidade já teve.
Cristiano tem experiência na área de Geociências, com ênfase em Paleoceanografia, Paleoclimatologia e Mudanças Climáticas. Possui graduação em Geologia pelo Instituto de Geociências da Universidade de São Paulo (USP), mestrado em Geociências pelo IGc – USP e doutorado em Ciências Naturais pela Universidade de Bremen, Alemanha. Desenvolveu pós-doutorado no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) e no MARUM-Center for Marine Environmental Sciences, Alemanha. Atualmente, é professor associado da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP; líder do subgrupo Paleoclima do Núcleo de Apoio à Pesquisa – Mudanças Climáticas (INCLINE) da USP; líder do Laboratório de Paleoceanografia e Paleoclimatologia da EACH; e membro de vários grupos de pesquisas, entre eles o Water Resources Working Group da iniciativa Safe Landing Climates do World Climate Research Programme (WCRP).